opinião

OPINIÃO: A água nunca foi o forte do Galdino

Quem me contou foi o finado Vicente Araújo, que quase veio a ser meu tio emprestado, quando eu ainda era vivo e tinha sebo no rim. Rosário do Sul, no último pós-seca brabo de que se teve notícia, era a tristeza em forma de cidade. Sem emprego, sem dinheiro circulando pelas ruas, o gado valendo uma miséria, os moradores do arrabalde - principalmente eles - viviam de biscates e ideias luminosas pra sair do atoleiro. A mesma que teve Horacinho Cabecinha de Cobra, ao organizar o 1º Torneio de Cachaça da Fronteira-Oeste.

Como palco da confraria etílica, a Praia das Areias Brancas, bem lá no final, perto do Restaurante do Otacílio. O encontro tinha regulamento, copa e ronda policial ostensiva. A inscrição seria, dinheiro de hoje, uns cinquenta pila, incluso certificado e apostila. Uma parte substanciosa do numerário arrecadado ficaria com o mentor do evento, e o restante se encaminharia para o cofre do vitorioso. A canha pura fora encomendada de Silveira Martins. Nove garrafões, da amarelinha. Daquela que o cara tem que ser muito peitudo pra mandar pro porão. Partidas de simples, um contra o outro, tipo jogo de mano no carteado.

Uma mesa grande ocupava boa parte do palanque central. Nas cabeceiras, três copos enfileirados - dos grandes - à disposição de cada contendor, eram enchidos até a boca pelo Horacinho, que também dava a largada, disparando um tiro de 38 pro alto. Vencia quem secasse mais rapidamente os recipientes. Veio gente de toda grota e fundão. Humanos, assemelhados e borrachos de difícil desenho. Iniciaram na sexta as disputas. Todas encarniçadas, dignas da nobreza do certame. No sábado choveu, o que fez aumentar um eito a capacidade hídrica dos participantes. Domingo foi a grande decisão. Um povedo na assistência. Aquilo parecia final de Libertadores. Dos 28 candidatos inscritos, sobraram dois: o Galdino, vulgo Goela de Socó, e o Aderbal, um negrinho criado nas bodegas da Serra do Caverá, que começou a beber pra valer com 12 anos, de desgosto, após a morte da mãe. As apostas envolviam desde enterro de dinheiro até galinha no choco.

Um esperto tirou o tempo dos finalistas. Coisa de minuto, minuto e cinco cada um levava do primeiro ao terceiro copo. Pelo relógio, viu-se que não tinha favorito. Sabendo que o troço estava encaroçado, Horacinho chamou o Galdino pra um canto e adentrou sem cerimônia no ouvido do dito-cujo:

"O negócio é o seguinte: nóis sêmo contraparente, por causa dos nosso tronco. Quem tem o mesmo sangue peleia agarradito e não cede terreno nem que a bala venha de cachopa. Apostei em ti todo o meu dinheiro, e até as moeda da guaiaca. Se perdê, fujo ainda hoje pro Uruguai, ou talvez me enforque por aqui mesmo. Pra facilitá a tua vida, e a minha também - porque não sou tatu - coloquei água no primeiro copo, em vez de cachaça."

Galdino deu um pulo pra trás, arregalou os olhos e botou as mãos na cabeça:

"Tá louco, Horacinho! Aí tu qué me arrebentá pelo meio. Na água eu não vou nada!"

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

OPINIÃO: A agricultura de precisão para agricultura digital Anterior

OPINIÃO: A agricultura de precisão para agricultura digital

OPINIÃO: Formar um governo: tarefa complicada Próximo

OPINIÃO: Formar um governo: tarefa complicada

Colunistas do Impresso